REDE GLOBO "ESQUECE" QUE É PARTE DO PROBLEMA E FAZ REPORTAGEM QUESTIONANDO A “FALTA DE DEMARCAÇÃO DE TERRITÓRIO INDÍGENA NA BAHIA” - Por Casé Angatu

Antes de mais nada:

DEMARCAÇÃO JÁ DO TERRITÓRIO INDÍGENA TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA, SERRA DO PADEIRO E DE TODOS OS POVOS EM PINDORAMA ("BRASIL") INTEIRA

No último dia 03/01/2022 a Rede Globo apresentou a reportagem intitulada: "falta de demarcação de território indígena na Bahia provoca tensão entre agricultores e líderes indígenas". A matéria jornalística focou no Território Tupinambá de Olivença e Serra do Padeiro. Apresento este texto porque algumas pessoas me escreveram surpresa com a reportagem e perguntaram minha opinião. No entanto, ao invés de opinar acredito que é melhor indagar: será mesmo que a reportagem da Rede Globo contribui para entedermos porque ainda não ocorreu a Demarcação da Terra Indígena Tupinambá, evitando as tensões conforme diz o próprio título da matéria? Será que a própria Globo não tem relação com as dificuldades em Demarcar Terras Indígenas neste lugar chamado por muitos de país?

 

Por Casé Angatu*


Antes de tudo saudações às pessoas Gwarïnï Atãs (Guerreiras Fortes) Parentas que foram entrevistadas na matéria da TV Globo. Com certeza as falas delas representam com bravura o Povo Tupinambá e esclarecem a necessidade da imediata demarcação do Território Tupinambá de Olivença e Serra do Padeiro.


Assim, as indagações neste texto não são de forma alguma em relação as falas das pessoas Parentas durante a reportagem. As ponderações aqui expressas referem-se a montagem final da reportagem que foi exibida. Vale lembrar que as matérias jornalísticas são editadas conforme os filtros das concepções de mundo dos veículos onde são produzidas. (Obs: Fotografia ao lado: Porancy durante um dos Seminários Índio Caboclo Marcelino no Território Tupinambá em 2016. Autoria: Mauricio Pinheiro)


Deste modo, começando pelo título da reportagem: “falta de demarcação de território indígena na Bahia provoca tensão entre agricultores e líderes indígenas”. Não seria melhor perguntar por que ainda não ocorreu a demarcação do Território Indígena Tupinambá de Olivença e Serra do Padeiro na Bahia, provocando tensões? Nesta mesma direção: qual a razão da não Demarcação das Terras Indígenas em Pindorama ("Brasil")?

 

Sei que alguns dirão que a razão que impede as demarcações das Terras Originárias é porque o Estado e a Justiça Brasileira não desempenham seus deveres constitucionais. De certa forma isto já é uma parte da resposta e a própria reportagem da Rede Globo demonstra isto.  


Na reportagem percebemos a postura do Ministério da Justiça (onde se “cuida” das demarcações de Terras) empurrando os questionamentos para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Por suas vez, aquele órgão indigenista oficial do estado brasileiro (FUNAI) de forma evasiva diz que está aguardando “uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre as demarcações e reintegração de posse, que essa indefinição resulta em insegurança jurídica e que acompanha os casos por meio das unidades descentralizadas.[1]  (OBS: as referências com os devidos links para posteriores consultas encontram-se no final deste texto).

 

Essa postura da FUNAI e do Ministério da Justiça não é uma surpresa até porque o atual governo fascista e anti-indígena (genocida dos Povos Originários) é a favor dos que desejam explorar a natureza e espoliar as Terras das populações originárias - ruralistas, madeireiros, grandes mineradores, setores desenvolvimentistas, etc. Além disso, não podemos esquecer que o presidente fascista está praticando sua proposta de campanha: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena” (Folha de São Paulo, 5 de novmenro de 2018)

 

Porém, cabe aprofundarmos sempre as análises porque como dizem nossas/nossos anciãs: “não se acaba com a tiririca sem tirar a raiz”. Neste sentido, Ayra Tupinambá, indígena e nativa do Território de Olivença, nos ajuda a ponderar de forma mais profunda sobre o assunto em sua dissertação de mestrado, defendida em outubro de 2020 e intitulada Aupaba Anamã Jycayba: Mbaecuaba-Eté Mboessaba Tupinambá Amotara – Taba Itapuã. Segundo Ayra Tupinambá:

 

Vale destacar que o Povo Tupinambá de Olivença conquistou, por meio de sua luta, o Reconhecimento Étnico Oficial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 13 de maio de 2002. Depois de aproximadamente sete anos, em 20 de abril de 2009, o Diário Oficial da União publicou o Relatório Circunstanciado de Delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, feito também pela FUNAI, demarcando 47.360 hectares entre as cidades de Ilhéus, Una e Buerarema.

No entanto, após dez anos contados a partir do Relatório Demarcatório da FUNAI (20 de abril de 2009), percorridos todos os procedimentos jurídicos, administrativos e políticos, nenhum dos governos que estiveram à frente do Estado brasileiro chancelou a Portaria Declaratória da Terra Indígena Tupinambá. Para piorar essa situação de incertezas, no dia 30 de dezembro de 2019, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, numa de suas últimas ações no governo e junto com a Casa Civil, fez retornar para a FUNAI o processo demarcatório Tupinambá que estava desde 2012 naquele ministério aguardando decisão final.

Junto com o processo Tupinambá, retornaram também para a FUNAI 27 outras Ações de Terras Indígenas que aguardavam Portarias Demarcatórias e Decretos de Homologação. Segundo o encaminhamento dado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, os Processos retornaram para serem revistos conforme as 19 condicionantes para a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol (Roraima) e o ‘marco temporal de 1988’”[2]

 

Percebe-se na dissertação acima citada que o problema da não demarcação das Terras Indígenas Tupinambá não é novo e vem de longe. O Superior Tribunal Federal (STF) tem contribuído e muito para essa demora estatal e jurídica que aprofundou um contexto  potencial de violência nas Terras Indígenas. No dia 15/09/2021, após pedido de vista do ministro Alexandre de Moares, o STF paralisou a votação do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 que possuía “repercussão geral” e tratava, entre outros assuntos, da hedionda e anticonstitucional tese do marco temporal.


O marco temporal praticamente anula vários processo de Demarcação de Terras Indígena no país e pode rever as que já foram demarcadas. Falamos isto porque essa autoritária tese alega que só tem direito às terras os indígenas aquelas pessoas que estavam nelas ou se assumiam como tais até o ano da proclamação da constituição em 1988. Uma tese absurda porque propositalmente menospreza os históricos processos de mais de 500 anos de expulsões, violências (física e espiritual) e negação de identidade étnica que os Povos Originários sofreram e ainda sofrem. Processos que chamamos de genocídio e etnocídio. No caso de Olivença os Tupinambá nunca deixaram suas terras e os que fizeram isso foi porque foram expulsos, mesmo assim retornaram. Porém, num contexto de violência, prisões, estupros e agressões foram perseguidos e proibidos de assumirem sua identidade que nunca deixou de existir.[3]

 

Vale lembrar que a análise desse processo pelo STF iniciou-se em abril/2019 e desde lá vem sendo sucessivamente adiada. Isto gerou várias manifestações como as que ocorreram em 2021 pelo Brasil afora e durante o Acampamento Luta Pela Vida em Brasília e Marcha das Mulheres Indígenas também no Distrito Federal. Aqui no Território Tupinambá ocorreram várias paralisações da estrada que liga Ilhéus à Canavieiras.

 

Assim, quando (setembro/2021) o STF paralisou a votação sobre o marco temporal já falávamos que essa situação só aumentaria  a violência nas Terras Indígenas. Como sempre falámos: “a justiça tarde mais não falha. Porém, a justiça tardando já está falhando”. Assinalamos isto porque junto com as ações do governo bolsonaristas-fascista e anti-indígena o STF ao demorar em decidir contra o marco temporal parece sinalizar aos que desejam as Terras Indígenas Tupinambá que nem a justiça e o estado garantiriam o direito às Terras já Demarcadas pelo Relatório da FUNAI de 2009.

 

Como bem falaram as pessoas Parentas na reportagem da Rede Globo à violência contra os que lutam pelo direito ao Território recrudesceu. O pior é que esse quadro pode piorar com possíveis reintegrações de posse  a partir de 31 de março de 2022. Destacamos essa data porque foi quando o STF decidiu que terminaria a suspensão das ações de reintegração de posse por causa da Covid-19. A situação é grave e pode piorar se ocorrer ações de reintegração de posse.

 

Por isto reiteramos que é urgente:

 STF DERRUBE IMEDIATAMENTE A HEDIONDA TESE DO MARCO TEMPORAL !


 DEMARCAÇÃO JÁ DAS TERRAS TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA E SERRA DO PADEIRO!


DEMARCAÇÃO JÁ DE TODAS AS TERRAS INDÍGENAS!

 

No entanto, voltando as questões iniciais deste texto: o que faz o estado e a justiça serem tão demorados e cruéis em suas decisões relativas à demarcação de Terras Indígenas, incluindo às do Povo Tupinambá? Na minha leitura a resposta está em ponderar o quanto o poder político e a justiça são gestados pelos interesses dos que se dizem "proprietários" das terras e só desejam as mesmas para explorar, desmatar e lucrar. Esses supostos "proprietários" são os herdeiros das invasões européias inciadas no século XVI e que gerou a espoliação dos Territórios Originários, mortes, prisões e escravidão - mais de cinco séculos de genocídio e etnocídio.

 

A manutenção dessa estrutura é uma das colonialidade que precisamos superar. O estado e a justiça brasileira são instituições que não se descolonizaram – se é que isto seja possível um dia. Mesmo quando os governos são considerados “democráticos” insinuam que para “manterem a governabilidade” é preciso "negociar" com esses setores herdeiros de um processo violento de colonização, espoliação de terras, escravidão e morte. Só que esquecem que nessa negociação morrem muitos indígenas, quilombolas e pessoas das populações tradicionais. Portanto, negociam nossas Terrras Originárias e vidas como moedas de troca. 

 

Reafirmo: os ruralistas (mesmo em sua roupagem de agronegócio), madereiros, grandes mineradores e desenvolvimentistas de hoje são os herdeiros dos antigos invasores coloniais, bandeirantes, senhores de engenhos, escravagistas, latifundiários. Suas ações foram rebatizadas como uma nova roupagem denominada de agronegócio.  Esses velhos inimigos dos Povo Indígenas são contra as demarcações das Terras Indígenase possuem entre seus aliados a própria Rede Globo, exercendo um grande poder sobre o estado brasileiro e sua justiça.

 

Aqui está uma das raízes da questão que a reportagem da Rede Globo não aborda: o estrutural, histórico e colonial poder junto ao estado e justiça que possui esse setor mais atrasado e violento daquilo que se chama de sociedade brasileira. Insisto: poder construído e consolidado com apoio da própria Rede Globo em vários momentos como através do Globo Rural e mais recentemente na campanha publicitária que diz: “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”.

 

A Rede Globo vem propagandeando que o  agronegócio tem que ser visto como um sistema produtivo capitalista, sendo  fundamental para o crescimento econômico do Brasil. Como analisa Telma Domingues da Silva em seu artigo “O que a mídia esconde quando fala ‘O agro é pop’”:

“De acordo com Roberto Schmidt (diretor de marketing da TV Globo), o objetivo da iniciativa é conectar o consumidor com o produtor rural e ao mesmo tempo desmistificar a produção agrícola aos olhos da sociedade urbana – dado o conjunto da obra, ‘desmistificar’ deveria ser mostrar a agricultura não só como uma indústria, mas como uma indústria moderna, confrontando um imaginário de rural como não-tecnológico, atrasado. ‘Queremos mostrar que a riqueza gerada pelo agronegócio movimenta os outros setores da economia’, salientou, acrescentando que: ‘a ideia é fazer com que o brasileiro tenha orgulho do agro’. (Obs: A imagem acima é uma produção da Associação Brasileira de Agroecologia)[4]

 

O “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”. Para nós o agro é herdeiro das invasões coloniais que gerou a espoliação das Terras Indígenas, escravidão, genocídio, etnocídio e que ainda impede a demarcação das Terras Originárias. Claro que a Rede Globo em sua matéria jornalística não analisaria que um dos impeditivos (talvez um dos maiores) do estado e a justiça para demarcarem imediatamente as Terras Indígenas Tupinambá é o poder estrutural e colonial desse setor que ela tenta vender como moderno. Até porque se assim fosse a Rede Globa deveria também questionar o quanto seus aliados do agro são coloniais, bem como ela própria. (Obs: a imagem ao lado pertence ao perfil no Facebook chamado de Terra de Direitos)


Ayra Tupinambá em sua dissertação de mestrado aqui já citada alerta que a devolução do processo demarcatório das Terras Tupinambá para se adequar ao marco temporal feita por Moro em 30/12/2019 indicava que: “(...) o Povo Tupinambá vivenciará mais uma jornada de contestações aos seus direitos e tentativas de espoliação das terras originárias.”


Assim, de certa forma tem razão os que dizem que as demarcações não ocorrem porque falta o estado e a justiça brasileira desempenharem seus deveres constitucionais, ainda mais em se tratando de um governo assumidamente fascista e anti-indígena. No entanto, continuo a indagar: por que os governos anteriores mesmo ditos democráticos não demarcaram Terras Indígenas como as do Povo Tupinambá? Ou seja, acredito que o cerne da questão esta na manutenção do poder que ainda exercem esses setores herdeiros das estruturas coloniais e capitalistas (ruralistas, madereiros, grandes mineradores e desenvolvimentistas - sucessores dos antigos invasores coloniais, bandeirantes, senhores de engenhos, escravagistas, latifundiários) que conduzem o estado e a justiça a não demarcarem as Terras Tupinambá e de todos os Povos Originários.


Claro que esperar essa ponderação de uma reportagem da Rede Globo seria demais até porque afetaria seus parceiros do agronegócio. Por isto mais uma vez deixo minhas saudações às pessoas Gwarïnï Atãs (Guerreiras Fortes) Parentas que foram entrevistadas na matéria e por corajosamente nos representarem e esclarecem a necessidade da IMEDIATA DEMARCAÇÃO DO TERRITÓRIO TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA E SERRA DO PADEIRO.


Finalizo com mais um trecho da dissertação de Ayra Tupinambá que diz:


“(...) as retomadas (autodemarcação) das terras  (...) decorrem da demora na homologação oficial do Território Originário, que demonstra a morosidade e o descaso com que o Estado e a justiça brasileira ainda tratam os Povos Indígenas. Do mesmo modo, a autodemarcação demonstra o protagonismo Tupinambá, na medida em que autonomamente construímos nossas aldeias, moradias e escolas. Fortificamos as formas tradicionais de nos relacionarmos com a natureza sagrada, consolidando a retomada do Território Ancestral.”[5]


DEMARCAÇÃO JÁ DA TERRA INDÍGENA TUPINAMBÁ! 

DEMARCAÇÃO JÁ DE TODAS AS TERRAS INDÍGENAS!

O AGRONEGÓCIO DE HOJE É HERDEIRO DOS VELHOS INVASORES EUROPEUS, BANDEIRANTES, SENHORES DE ENGENHOS, ESCRAVAGISTAS!

 

AWÊRÊ AIÊNTÊN !!!


________

*Casé Angatu - Indígena e morador no Território Tupinambá em Olivença (Ilhéus/BA) na Taba Gwarïnï Atã – uma das áreas afetadas pelas tempestades causadas pelo ciclone subtropical Ubá e “El Niña”. Leciona no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER-UFSB) e na Universidade Estadual de Santa Cruz – (UESC/Ilhéus/BA). Pós-Doutorando em Psicologia na UNESP/Assis/SP; Doutor pela FAU/USP; Mestre em História pela PUC/SP; Historiador pela UNESP. Autor de livros e textos: alguns deles citados neste texto.

 



[1] JORNAL NACIONAL, “Falta de demarcação de território indígena na Bahia provoca tensão entre agricultores e líderes indígenas”. In: Rede Globo. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/01/03/falta-de-demarcacao-de-territorio-indigena-na-bahia-provoca-tensao-entre-agricultores-e-lideres-indigenas.ghtml , 03/01/2021.

 

[2] AYRA TUPINAMBÁ. “Aupaba Anamã Jycayba: Mbaecuaba-Eté Mboessaba Tupinambá Amotara – Taba Itapuã”. TI Tupinambá Olivença. Dissertação defendida junto ao PPGER/UFSB, sob orientação de Casé Angatu, out/2020. Disponível em: file:///C:/Users/casea/Downloads/Vanessa_R_Santos_-_Verso_Final_28_12_2020_1%20(3).pdf

[3] ANGATU, Casé. “Não ao Marco Temporal e Fora Bolsonaro”. In: ADUSC. Disponível em: https://www.portal.adusc.org/nao-ao-marco-temporal-e-fora-bolsonaro-por-case-angatu/ , 01/09/2021

[4] SILVA, Telma Domingues da. “O que a mídia esconde quando fala ‘O agro é pop’”. In: Outras Palavras”. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o-que-a-midia-esconde-quando-fala-o-agro-e-pop/ , 24/12/2021.

[5] AYRA TUPINAMBÁ, Ob. Cit.

Comentários

  1. Super esclarecedor e impecável seu texto, Casé! Bem fundamentado e bem escrito, parabéns por mais essa plataforma de registro de fatos importantes e incontestáveis. Awêre!

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