AS TEMPESTADES QUE ABALARAM A BAHIA E DEMAIS ESTADOS BRASILEIROS NUM OLHAR INDÍGENA DECOLONIAL & AS PRÓPRIAS PESSOAS DO POVO ENSINANDO OS CAMINHOS – Por Casé Angatu **
No final de
2021 e início de 2022 Temporais Abalaram as Populações de diferentes lugares de Pindorama (Brasil).
Este texto foi escrito sob o impacto do que aconteceu na região onde vivo e que
foi uma das mais afetadas: Sul, Extremo Sul, Oeste, Sudoeste da Bahia e Norte
de Minas.
Foto: Mar de Olivença - Sirihyba - Terra Indígena Tupinambá - enfrente Taba Gwarïnï Atã - (Ilhéus/BA) Autoria: Mauricio Pinheiro |
O poema da imagem numa interpretação quase
impossível:
"onde o mar / encontra o céu / vira chuva /
encontra a terra / terra está nas águas / dos rios / viram mar / encontram o
céu / reiniciam a voar / ar molhar / mãe das águas cuida / da água vida”
(Por: Casé Angatu)
A
Percepção Originária vinda da Sabedoria Ancestral
Era a primeira
segunda-feira do mês de dezembro desses quase dois anos da doença pandêmica (6
de dezembro de 2021). Logo cedo dois Parentes Indígenas e Pescadores – Bijupirá
e Baiacu – se encontraram à beira-mar entre o Jairy – Sirihyba que fica aqui em
Terras Tupinambá em Olivença (Ilhéus/BA). Estavam em frente a Aldeia Jairy
Ituaçu e a Aldeia Taba Gwarïnï Atã (onde moro). Como quase sempre faço, pela
manhã também estava lá.
Sabe ... nosso Território fica
na Mata (Ka’á) Atlântica e em frente ao Paranãussu (Mar Grande – Oceano
Atlântico). Nossa Terra (Opaba) é cortada por rios, riachos e ygarapés onde
correm águas férreas, consideradas medicinais. Opaba Poranga (Nossa Terra Linda),
de muitas águas, matas, bichos e encantarias.
Voltando ao
encontro que presenciei pela manhã entre os dois Parentes Pescadores Tupinambá,
Bijupirá e Baiacu no dia anterior (domingo) combinaram logo cedo na segunda colocarem
a jangada (ygapeba) no mar para pescarem. Sei disso porque estava conversando
com os dois quando marcaram a pescaria.
Ao se
encontrarem conversaram:
– “Katuara Parentes”,
disse Bijupirá Tupinambá.
– “Katuara”, responderam
Baiacu Tupinambá e Casé Angatu.
Bijupirá e Baiacu olharam então para o mar, miraram o céu, sentiram
o vento e continuaram a prosa:
– “Rapaz ... hoje o mar
(paranã) tá retado de agitado (yaíba) e a maré cheia (yúra pungá)”, falou
Bijupirá Tupinambá.
– “Oxeee ... tu não viu
ontem não ... foi a noite (pytuna) todinha de relâmpago (amamberaba) ...
o céu (ybaca) ficou claro ... parecia São
João”, comentou Baiacu Tupinambá.
– “Foi mesmo ... do jeito
que tá aí não tem como botar a jangada (ygapeba) no mar (paranã)” – afirmou
Bijupirá Tupinambá.
– “Justo agora que é época
de pegar o pirá (peixe) e conseguir uns trocados” – ponderou Baiacu Tupinambá
– “Tupã sabe o que faz e
Janaina também ... bora molhar a palavra que a chuva (amana) já tá caindo forte
(atã) e pelo jeito vai demorar passar” – considerou prevendo Bijupirá
Tupinambá
– “Isto se não virá
tempestade (ybytuaíba) ... bora ...”
– pressentiu Baiacu Tupinambá
concordando com a sugestão de molhar a palavra.n (2)
E aquela chuva virou mesmo tempestade como intuíram Bijupirá
e Baiacu, demorando cerca de seis dias para estiar (de 06 até 12 de dezembro de 2021). Os meus Parentes tinham razão em suas previsões
feitas através da percepção originária, gerada das vivências atemporais como
pescadores indígenas e da sabedoria ancestral.
Porém, não sabíamos que temporal seria fora do comum em
sua intensidade, demorando um tempo maior para abrandar. Até então não tínhamos
noção que aquela tempestade era gerada por um ciclone subtropical denominado pela
Marinha do Brasil com o nome em tupy de “Ubá”. (4)
Do mesmo modo, como poderíamos prever que o lugar onde morávamos (Terra Indígena Tupinambá de Olivença – Ilhéus) seria uma das áreas
afetadas pelas tempestades, bem como toda região Sul, Extremo Sul, Oeste,
Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais. Para piorar sem ainda nos
recuperarmos após a passagem do ciclone subtropical Ubá fomos afetados novamente
por tempestades cerca de 11 dias depois entre os dias 23 até 25 de dezembro de 2021.
Os novos temporais, segundo os especialistas em meteorologia, foram
causados pelo fenômeno climático chamado “La Niña” e aumento da temperatura no
oceano. Isto ocorreu quando ainda terminava este texto e por isto precisei fazer
sua atualização no sentido de inserir a segunda onda de temporais que
enfrentamos.
Por isto indago: será que as agências/institutos meteorológicos
e climatológicos não conseguiriam prever eventos climáticos e meteorológicos
extremos como os que nos abalou? Não seria possível emitir alertas e tomar
medidas de precaução, reduzindo as consequências? (5)
Na mesma direção questiono: são só os temporais os
únicos responsáveis por afetarem as vidas, das pessoas que geralmente são as
mais carentes materialmente pelo país afora, resultando em mortes, ferimentos,
doenças e perdas do pouco que se tem? Ou será que o capitalismo e seus
mandatários também possuem responsabilidades?
As tempestades revelam a Histórica e Estrutural Bio-Necropolítica
do Bio-Necropoder Capitalista que o Genocida radicalizou
Não é objetivo deste texto responder conclusivamente
essas inquietações aqui enunciadas, mas aventar possibilidades de ponderações. Além
disso, essas indagações são geradas pela indignação que surgem de pessoas como o
autor deste texto que vivenciaram e ainda vivenciam as sequelas das tempestades
ocorridas entre os dias 06 - 12/12/2021 e 23 - 25/12/2021.
Sei que dirão e com toda razão: o atual governo negacionista
do conhecimento, da pesquisa e da ciência tem cortado verbas e investimentos
também neste setor das previsões meteorológicas e climatológicas. Sem dúvida isto tem ocorrido e possui
relação com as consequências geradas pelo “Ubá” e “La Niña”. É notória a nefasta atuação
genocida do governo fascista e negacionista que busca a deterioração dos estudos, pesquisas e políticas
públicas, especialmente quando favorecem a população a exemplo do que ocorre
nas áreas meteorológicas e climatológicas.
A título de exemplo, em
setembro deste ano (2021) o governo federal interrompeu a atuação do Sistema
Nacional de Meteorologia – SNM, depois de quatro meses de sua criação. O SNM
tinha com intuito realizar com maior eficiência as previsões meteorológicas, sendo
coordenado pelo Instituto Nacional de Meteorologia - INMET (Ministério da
Agricultura), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE (Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovações) e Centro Gestor e Operacional do Sistema de
Proteção da Amazônia - CENSIPAM (Ministério da Defesa). Para piorar a falta de
perspectiva gerada pela suspensão do Sistema Nacional de Meteorologia vale
ressaltar que a interrupção foi encaminhada pelo Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovações, e executada pela Secretaria Especial de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República – SAE.
Outra demonstração do descaso do atual governo federal em relação à
prevenção de “eventos climáticos ou meteorológicos”
ocorreu em junho/2021. Na ocasião os mandatários da república deixaram
sob ameaça de desligamento o supercomputador “Tupã” por falta de recursos para
sua manutenção e até para pagar a conta de luz.(6) Essencial nas análises de dados do Centro de Previsão de Tempo e Estudos
Climáticos, o “Tupã” é de responsabilidade do Instituto Nacional de Pesquisas
Especiais – INPE (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) e quase foi
desligado já em agosto/2021. Porém, o desligamento do supercomputador ainda continua previsto para o início do próximo
ano (2022).
Mas não pensem que a paralisação do Tupã foi adiada somente
devido à necessidade de prevenir a população em relação aos “eventos climáticos ou meteorológicos extremos”. Aparentemente
o desligamento foi postergado porque o supercomputador também é necessário para
agricultura. Segundo Gilvan Sampaio, Coordenador Geral das Ciências da
Terra:
[...] sem um
supercomputador é quase impossível avançar com as previsões. "Não ter uma
máquina como essa significa que em médio e longo prazo nós ficamos estagnados.
E quem perde são os setores de agricultura, energia e defesa civil, justamente
por não ter um avanço para melhor antever uma seca ou episódio de chuvas
intensas. Nós perdemos essa capacidade de antecipar cada vez mais esses eventos
que tanto afeta a agricultura”, comenta. (7)
Claro que não tem como deixar de denunciar essas ações deliberadamente
genocidas do atual governo negacionista do
conhecimento e que prejudica a população brasileira. A não previsão eficiente de
eventos climáticos como os que nos atingiu gera: mortes, pessoas feridas,
doenças, sofrimentos, perdas materiais do pouco que se tem. Além disso, a
política genocida não é uma novidade na forma como o atual governo federal trata
o povo, basta lembrar como atuou negando o enfrentamento à covid-19.
No entanto, mesmo considerando o sucateamento de
setores vitais para a população no sentido dos estudos e previsões climáticas e meteorológicas,
minha inquietação continua: o Estado (em
suas diferentes esferas: federal, estadual e municipal), a Marinha do Brasil e o
Sistema Nacional de Defesa Civil não foram
informados sobre o “Ubá” e “La Niña” pelas
Agências/Institutos Meteorológicos/Climatológicos ainda existentes e pertencentes
aos órgãos públicos ou privados, bem como pelas Universidades Públicas.
Agências, Institutos e Instituições como: Instituto Nacional de Pesquisas Especiais – INPE (Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovações); Instituto Nacional de Meteorologia - INMET (Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento); Instituto de Energia e Ambiente da
USP – IEA/USP, Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais
– CEMADEN (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações); Sistema Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, Centro Nacional de Gerenciamento
de Riscos e Desastres – CENAD
(Ministério da Integração Nacional), Sistema Nacional de Defesa Civil;
Climatempo, MetSul – Meteorologia; entre outros.
Ou será que não é possível mais realizar previsões
meteorológicas e climatológicas como ocorreu em 17 de abril deste ano (2021). Numa
das publicações da página da Climatempo daquele dia encontramos estarem
previstos temporais gerados por um ciclone subtropical para o dia 19 de abril
de 2021:
Novo
ciclone subtropical poderá se formar na costa brasileira: Os meteorologistas estão atentos a uma nova área de
baixa pressão atmosférica que começa a se desenvolver na costa de São Paulo. [...] O sistema deve estar
completamente formado na próxima segunda-feira, 19 de abril [2021]. A Marinha
do Brasil já emitiu um aviso de acompanhamento desse sistema. Se esta
baixa pressão atmosférica evoluir até uma tempestade subtropical nos próximos
dias, deverá ser batizada com o nome de Potira [...], deixando o mar agitado em parte da costa do Sudeste e também do Sul
do Brasil.” (8)
Antes de continuar reafirmo que aqui apresento
indagações e não conclusões finais até porque sou leigo nesta área de previsões
meteorológicas e climatológicas. Isto
é, são inquietações de quem vive numa das regiões onde ocorreram os efeitos do
ciclone subtropical “Ubá” e do fenômeno climático “La Niña” sem
ter percebido a divulgação ampla e incisiva de alertas, bem como de ações de
prevenção. Não obstante, se os avisos e as ações ocorreram e não percebi deixo
aqui minhas antecipadas desculpas pela falta de percepção o que já demonstra
que não foram amplamente divulgadas de forma incisiva.
Feita a ressalva acima e voltando aos questionamentos: será
que não tinha mesmo como prever a formação do “Ubá” e “La Niña”, bem como seus
efeitos, mesmo considerando os sucateamentos efetuados pelo governo
negacionista nesta área? Caso possível a previsão porque não alertaram às
populações das áreas que provavelmente seriam afetadas por temporais e
vendavais, evitando algumas das tragédias que resultaram em mortes? Caso tenham
avisado: porque esse alerta não foi amplamente divulgado ou efetivado?
Por isto fui pesquisar os dias anteriores ao “Uba” e encontrei
algumas informações no site da MetSul – Meteorologia do
dia 5 de dezembro de 2021. Ou seja, às vésperas da primeira tempestade que nos afetou
a MetSul – Meteorologia prognosticava: Ciclone com Trajetória Atípica
Durante a Semana na Costa Brasileira o texto alertava:
Ciclone vai se formar na costa brasileira e tende a percorrer uma
trajetória atípica no Atlântico Sul. O sistema deverá ser responsável ainda por
chuva excessiva com uma condição perigosa para inundações em alguns estados. [...]
Na quarta (8/12/2021) a chuva seguiria forte a intensa no Norte de Minas Gerais
e no Espírito Santo com volumes altos nos limites da Bahia com os dois estados.
Na quinta (9/12/2021), as mesmas regiões seguiriam com chuva forte a intensa em
diferentes pontos e acumulados diários isolados acima de 100 mm. Na sexta (10/12/2021),
o quadro pouco se altera no posicionamento das áreas de chuva mais volumosa. [...]
Os volumes nestas áreas podem facilmente superar os 200 mm nos próximos sete
dias com registros isolados mesmo acima de 300 mm. Sob este cenário de
precipitação, será alto o risco de inundações repentinas e por transbordamento
de rios, além de alagamentos por chuva forte e possibilidade de deslizamentos
em encostas. (9)
Ao que tudo indica o próprio governo federal sabia que
poderia ocorrer. Numa entrevista ao Jornal da CBN no dia 14/12/2021 o Ministro Rogério Marinho (Ministério do Desenvolvimento Regional), contraditoriamente, informou que a “situação na Bahia estava sendo monitorada desde
28 de novembro por meio do Sistema Nacional de Prevenção, Enfrentamento e Ajuda
a Desastres”. Rogério Marinho chegou a ressaltar a atuação “conjunta com a
Defesa Civil do estado, informando a possibilidade de ocorrências de fortes
chuvas, ações de prevenção e deslocamento de pessoal para a região”.
Segundo o Ministro:
Nos informamos o Estado da Bahia que haveria fortes ocorrências de
chuvas, informamos os municípios que poderia acontecer o problema, fizemos um
trabalho ligado a questão da prevenção porque você precisa avisar com
antecedência [...] deslocamos nosso pessoal para o estado da Bahia já nesta
datada [provavelmente ele se refere ao dia 28/11/2021], fizemos reunião com os
prefeitos e com o coordenador da Defesa Civil da Bahia desde essa época. Nós já
estávamos lá com um Centro de Operações montado na cidade de Itamaraju
[...]então o governo está fazendo sua parte.(10)
Porém, pelo jeito as ações federais não foram
suficientes ou não tiveram alcance desejado tanto na prevenção do ciclone e
posteriormente na tentativa de amenizar suas consequências. Como morador aqui numa das regiões afetadas pelo “Ubá” não acompanhei nenhum
alerta e muito menos essas medidas anunciadas pelo Ministro antes do dia
06/12/2021, durante as tempestades e depois da passagem do ciclone. Insisto:
caso isto tenha ocorrido, por favor, corrijam minha informação.
Não obstante, os números resultantes dessa primeira tempestade falam por
si só.
Sobe o Número de Vítimas pela Chuva Extrema na Bahia: Dados da Defesa Civil Estadual mostram que as intensas precipitações atingiram quase 300 mil pessoas com milhares de desalojados. A Superintendência de Proteção e Defesa Civil da Bahia (Sudec) confirmou neste fim de semana [18 e 19/12/2021] mais duas mortes em consequências das fortes chuvas que atingem o Sul do estado desde o início de novembro. Segundo o órgão estadual, ao menos 18 pessoas morreram e 276 ficaram feridas em função dos eventos hidrológicos (enxurradas, alagamentos, inundações e deslizamentos) que já afetaram ao menos 299.360 pessoas. Até ontem, 63 cidades baianas já tinham decretado situação de emergência. Com base em informações fornecidas por prefeituras baianas, a Sudec calcula que, até ontem, 15.483 pessoas tinham sido desalojadas, famílias que tiveram que deixar suas casas temporariamente e se hospedar na casa de parentes, amigos ou hotéis, e 4.453 desabrigadas, tendo que ser acolhidas em abrigos públicos ou locais improvisados. (11)
Ainda sobre as medidas posteriores ao ciclone vale destacar que o
governo federal até o dia 14/12/2021 liberou somente R$ 5,8 milhões para seis
das 63 cidades então em situação de emergência na Bahia. (12) Para mensurar o quanto é diminuto este valor basta dizer que a mansão do senador
Flávio Bolsonaro (PL), localizada em bairro de luxo de
Brasília, custou R$ 6 milhões.
Outra demonstração do descaso no amparo às populações
atingidas pelas tempestades transparece num comunicado emitido pela Prefeitura
de Jucuruçu (uma das cidades baianas mais atingidas pelas tempestades) no dia
12/11/2021. Constrangida a prefeitura local pediu desculpas aos moradores do
lugar por não conseguir auxiliar todas as pessoas afetadas:
Nossa amada Jucuruçu foi pega de surpresa, no meio da
noite, com uma enchente que desabrigou diversas famílias. As águas das fortes
chuvas destruíram sonhos, nosso comércio, casas e bens materiais. (13)
De acordo com o comunicado da Prefeitura de Jucuruçu, a cidade “foi pega de
surpresa”. Portanto, as autoridades de Jucuruçu não foram alertadas sofre as
tempestades. Caso isto tenha ocorrido o alerta não foi o suficiente para
amenizar os efeitos dos temporais.
A mesma situação se repetiu em relação ao fenômeno climático chamado “La Niña” entre os dias 23 – 25 de dezembro
de 2021, tornando o quadro em nossa região mais devastador ainda. Conforme o portal
UOL, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais - CEMADEN
(Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) desde o dia 20 de dezembro/2021
emitiu três alertas de riscos para nossa região, compartilhados com o Centro
Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres – CENAD (Ministério da Integração Nacional),
responsável pelos contatos com a Defesas Civis dos estados e municípios.
O primeiro desses comunicados do CEMADEN era até contundente:
"Risco de novas inundações e deslizamentos de terra na Bahia nos
próximos dias", o documento diz: "muito provável ocorrência de chuvas
volumosas, especialmente entre os dias 24 e 25 de dezembro, [que] permitem
identificar um ALTO RISCO de ocorrência de novos deslizamentos de terra e
inundações" (14)
No entanto, outra vez ao que tudo indica os alertas não foram amplamente
divulgados e nem as precauções tomadas. Para José Marengo, Coordenador-Geral de
Pesquisa e Desenvolvimento do CEMADEN:
Os alertas servem para minimizar os danos, não é possível zerá-los. Mas
não fossem esses alertas, o resultado seria muito pior. Temos ainda cidades não
preparadas, ou sem a Defesa Civil para receber essa informação. E há uma
dificuldade histórica em retirar moradores de áreas de risco. (15)
Nas entrelinhas da fala de Marengo aparece um dos pontos principais para
pensarmos as razões estruturais pelas quais os alertas não foram/são oferecidos
e nem as medidas de preocupações tomadas: “dificuldade histórica em
retirar moradores de áreas de risco”. Isto é, a
histórica lógica de morte dos que comandam o sistema capitalista pensando
em custos e não em vidas.
Em outras palavras: bio-necropolítica do bio-necropoder onde se mede as despesas
e não as vidas. Porém, retomaremos e assunto mais adiante. Para o momento vale
realçar que essa estrutural e histórica forma de (não) agir tem custado vidas,
aumento da pobreza e sofrimentos imensuráveis como ocorreu/ocorre com às
populações do Sul,
Extremo Sul, Oeste, Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais.
Conforme os dados apresentados pela Superintendência de Proteção e
Defesa Civil - SUDEC para o dia 31/12/2021, o número de mortos chegou até aquela
data era de 25 vítimas, com 517 pessoas feridas e 643 mil pessoas atingidas
pelas tempestades. Agora são mais de 91 mil pessoas desabrigadas ou desalojadas,
envolvendo 151 cidades em situação de emergência. Esses números correspondem
aproximadamente a 30% das cidades baianas em estado de emergência. Só em
Itabuna o número de atingidos pelas tempestades, segundo a Secretaria de
Promoção Social e Combate à Pobreza, envolveu 30 mil pessoas – cerca de 30% da
população.
Como da primeira vez o “auxílio” oferecido pelo governo federal é irrisório
diante das necessidades. Um dos supostos “auxílios” oferecido é no mínimo uma
crueldade com o Povo Baiano e dos outros estados por que o governo federal
“liberou” por medida provisória (MP) R$ 200 milhões para reconstruir
estradas atingidas pelas chuvas. O problema é que esse valor é para ser
dividido por cinco estados: Bahia, Amazonas, Minas Gerais, Pará e São Paulo.
Esse “auxílio” ou mesmo disponibilizar o fundo de garantia que pertence
aos próprios trabalhadores são ações que demonstram mais uma vez a histórica e
estrutural lógica da bio-necropolítica do bio-necropoder dos que comandam o
estado capitalista. Claro que esse quadro é agravado pela atuação genocida do
governo fascista. Enquanto os temporais afetavam as nossas vidas o presidente
fascista estava de férias no litoral catarinense.
Vale lembrar que mesmo as chuvas cessando fica o perigo
de doenças, novos acidentes em decorrência das estruturas abaladas das casas, prédios
públicos, comerciais, estradas, condições do solo, encostas e rios. Além disso,
o perigo de doenças aumenta em plena pandemia de covid-19 e do vírus da
influenza, tais como: leptospirose , hepatite A, hepatite E, doenças
diarreicas, febre tifoide, cólera, dengue.
Como explica a Fundação Instituto Oswaldo Cruz -
FIOCRUZ, além da necessidade de alerta a população para eventos como o “Ubá” é
necessário medidas estruturais efetivas após manifestações climáticas como a
que ocorreu:
[...] um evento climático ou meteorológico extremo
resulta de uma séria interrupção do funcionamento normal de uma comunidade ou
sociedade, afetando seu cotidiano. Essa paralisação abrupta envolve,
simultaneamente, perdas materiais e econômicas, assim como danos ao ambiente e
à saúde das populações por meio de agravos e doenças que podem causar mortes
imediatas e posteriores. Uma ocorrência do gênero torna o grupo afetado incapaz
de lidar com a situação utilizando os próprios recursos, o que pode ampliar os
prejuízos para além do lugar de sua eclosão. (16)
Motyrõ: o Povo oferecendo Caminhos na
Autoconstrução Coletiva de suas Vidas, resistindo e (re)existindo ao
capitalismo
Ciente desse quadro apresentado
pela FIOCRUZ outro questionamento surge: por que não são efetuadas medidas
estruturais preventivas antes mesmo de eventos climáticos ou meteorológicos
extremos acontecerem? Não estou aqui tratando de remoções forçadas de famílias
ou de pessoas das chamadas áreas de risco. O que assinalo é construir alternativas
de forma participativa para atenderem as perspectivas de vida e habitacionais
dos que habitam em locais de risco e de todo população despossuída de riqueza
material.
Um bom exemplo neste sentido
vem da cabeleireira e artesã Samara Ribeiro, moradora
de Itabuna que teve sua casa destruída pela cheia do Rio Cachoeira (principal
rio que corta aquela cidade) durante as últimas tempestades. Samara com cerca de 242 pessoas de 82 famílias precisou se
abrigar no Parque de Exposições municipal nas baias que comportam animais
durante exposições. Após protestos dos abrigados a prefeitura local procurou
transferir as pessoas para Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Porém, a cabeleira e artesã foi uma das
pessoas que se recusaram a sair do Parque de Exposições porque:
Apesar dos riscos, ela afirma que não vai para a UFSB porque é proibido
que ela leve os três porcos que conseguiu salvar durante a enxurrada. Além
disso, ela, que teve a casa e o comércio do marido destruídos, afirma que no
abrigo da faculdade é necessário cumprir regras como não sair do local depois
das 18 horas. “Já não basta tudo que estamos vivendo e ainda precisamos
cumprir regras em abrigos? Eu que não vou ficar aprisionada”, afirmou. Samara
também afirma que a faculdade é longe do lugar onde reside e que não quer ficar
longe dos seus animais. Além dela, o marido, duas filhas e crianças e outros
parentes estão abrigados no parque. (17)
Insisto: é necessário construir
coletivamente e de forma participativa caminhos para moradia popular gratuita,
atendendo as perspectivas de vida dos que habitam. TEM QUE SER GRATUITA PORQUE
SENÃO NÃO É POPULAR.
Não se trata de implementar
práticas históricas de exclusão das camadas populares da população. Em
dois dos meus livros (“Nem Tudo Era italiano – São Paulo e Pobreza” e “Identidade Urbana e Globalização”), discutindo
especificamente a cidade de São Paulo e Guarulhos, analiso
como os donos do poder político e econômico usam os discursos de urbanidade,
segurança, higiene, combate às moradias de risco para implementar práticas de
limpezas socioculturais, expulsões e exclusões.
São exemplos históricos neste sentido o combate aos
cortiços, favelas, moradores em situação de rua, habitações em áreas
consideradas irregulares, de risco, perseguições ao comércio popular,
diferentes formas de trabalhar e expressar tradições socioculturais. (18)
O caminho que assinalo é
outro porque parte do princípio da
construção participativa de soluções para a habitação popular e criação de infraestruturas
atendendo as perspectivas de vidas e vivências das pessoas. Soluções por vezes
já existentes nas formas como o próprio povo construí suas moradas e vivências,
resistindo às imposições e (re)existindo em suas tradições.
Assim, tomando como exemplo Ilhéus,
município onde fica a Terra Indígena onde moro e que também foi atingida pelo
ciclone subtropical “Ubá” e “El Niña” faço as ponderações a seguir, seguindo o levantamento
feito pelo site da Câmara Municipal da cidade:
Números estimados pela Defesa Civil apontam que, hoje,
residem nos altos e morros de Ilhéus 17 mil famílias em áreas de anormalidade
(não possui regulamentação de imóveis e aonde sequer chegam serviços
essenciais), 5 mil famílias em áreas de risco e mais 20 mil famílias em áreas
de morro. Em todos estes locais há necessidade de intervenções para garantir a
segurança dos seus habitantes. Dos 45 altos e morros, apenas 12 têm
acessibilidade de veículos com serviço de transporte público, mesmo assim de
forma precária. A maioria destas localidades conta apenas com escadarias. (19)
Desta forma, feito o
levantamento da situação cabe a criação de políticas públicas participativas
com as comunidades mencionadas para enfrentar os riscos a que estão submetidas.
As intervenções não podem ser práticas unilaterais do poder público e sim
formas conjuntas respeitando as populações.
Aliás, as ações contando com
a participação popular nas decisões estão previstas pela Lei Federal No.
10.257, de 10 de julho de 2001. Chamada de “Estatuto da Cidade” essa Lei tem 20
anos é assinala que as cidades deveriam possuir: um planejamento participativo;
função social da propriedade (os imóveis precisariam servir para moradia,
comércio lugar de trabalho); estudo de Impacto Ambiental e Social. Ainda
conforme o “Estatuto da Cidade” é preciso garantir:
[...] o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. (20)
Do mesmo modo, pensar e agir
assim não se trata de uma utopia ou devaneio impraticável. Um exemplo de ações pensando
na moradia das camadas populares da população de forma participativa foi a
atuação da prefeita Luiza Erundina na cidade de São Paulo entre 1989 e 1992. Em
sua gestão a prefeita desenvolveu o Programa de Construção por Mutirão e
Autogestão: “os mutirões foram pensados como solução habitacional de baixo
custo onde os próprios ‘mutirantes’” num sistema de “autogestão eram
responsáveis pela construção da unidade e também pela administração do empreendimento”. (21)
Vale observar que o mutirão
é uma palavra de origem tupy: potyrom ou motyrõ que significa “pôr as mãos
juntas, trabalhar juntos, trabalho em comum". Alguns chamam este processo
de Arquitetura Vernacular, Bioconstrução ou Popular. Prefiro chamar essa forma de
construir de Manejo da Autoconstrução Coletiva Originária ou Popular. Um manejo
que depende de condições geográficas, climáticas, aspectos socioculturais
específicos.
Os Povos Indígenas sempre praticaram essa forma de construir suas habitações. A uka (oca) onde moro na Aldeia Gwarïnï Taba Atã na Terra Indígena Tupinambá de Olivença (Ilhéus/Bahia) foi assim construída, bem como as demais. As imagens que seguem demonstram a Comunidade da Aldeia Itapuã também daqui do Território Tupinambá de Olivença construindo em Mutyrõ e na tradição da taipa a sede do novo Colégio Estadual Indígena Tupinambá Amotara. (22)
Fotos: Comunidade da Aldeia Itapuã na Terra Indígena Tupinambá de Olivença em Mutyrõ constrói na tradição da taipa a sede da nova Escola Indígena Amotara. Data: 18/01/2019. Autoria/Fonte: Ayra Tupinambá
Nas cidades vejo em alguns lugares, especialmente nos territórios das camadas populares, várias características dessa forma de construir indígena e também considerando as condições climáticas, geográficas e socioculturais. Até porque muitas das pessoas que habitam as periferias, quebradas e as chamadas áreas de risco tem suas origens na indianidade. Assim, a exemplo de como atuou a Prefeita Erundina e como indica o Estatuto da Cidade é possível utilizar as experiências populares de construção de suas casas nos projetos para evitar áreas de risco.
Fotos:
Mutirão em Heliópolis na periferia paulistana que assim como em várias cidades as
comunidades se organizam coletivamente para construir suas habitações. Data: 1994.
Autoria/Fonte: Juca Martins /
https://olhar.photoshelter.com/gallery-image/FAVELA/G0000ubBGjF4WYnQ/I0000eDawtHrtDa0
Outros exemplos na direção
da construção da moradia popular são os Movimentos por Moradia e Ocupações que
ocorrem em diversas cidades. Ocupações legitimas e que assinalam alguns dos
caminhos para o próprio poder público. São pessoas que já constroem suas habitações.
Junto com as ocupações não é
possível esquecer da necessária Demarcação das Terras Indígenas, Quilombolas, Comunidades
Tradicionais e Reforma Agrária. Afinal de contas qual a procedência e/ou
ancestralidade daqueles que vivem em situações consideradas de risco nas
cidades? Por acaso não são pessoas “herdeiras” de um processo estrutural e
histórico de espoliação/expulsão das terras?
Como exemplificação do que
desejo escrever pensemos nos dados censitários da população indígena a partir dos
números do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) para 2010: (23)
[...] com as informações censitárias que existem é possível pensar como ocorre as (re)existências dos Povos Originários de maneira diferenciadas, espiritual e corporalmente marcado pela autodeterminação. Vale salientar que do total de 896,9 mil indígenas, cerca de 324,8 mil (36%) viviam/vivem em cidades. (24)
Foto: Início da ocupação Anita Garibaldi e Guarulhos/SP. Aquela comunidade em regime de mutirão construiu suas casas e tornou o local hoje um bairro da cidade de Guarulhos. Data. 2002. Autoria: Mauricio Pinheiro.
Foto:
“Moradia é um direito: Edifício 9 de Julho, em São Paulo, vitrine do Movimento
dos Sem-Teto do Centro (MSTC) da cidade. (Michael Fox)”. In: https://www.thenation.com/article/archive/brazil-bolsonaro-activists-housing-homeless-rights/ , 27/08/2019
Mas por que parecem
impossíveis práticas como os Mutyrõs Indígenas, dos Movimentos por Moradia,
Ocupações, Programa de Construção por Mutirão, Autogestão? Práticas que
aparecem impossíveis e que já são praticadas. Esse é mais um questionamento que
se soma aos anteriores.
Por qual motivo muitas
pessoas não questionam a falta de alertar às populações avisando sobre eventos
climáticos ou meteorológico extremos como o que nos atingiu? Qual a razão de
muitos não se questionarem sobre a ausência de medidas preventivas (mesmo que
provisórias) quando é possível prever ciclones como o “Ubá”? Como é possível não
contestarmos o descaso ou pouca ação do Estado junto as populações afetadas por
“eventos extremos”?
Existem mesmo os que
atribuem a culpa dos eventos como o “Ubá” e “El Niña” às explicações genéricas
universais, tais como:
– "o que ocorreu é culpa do próprio ser
humano"
– "o culpado é do juruá ou cari"
– "é a natureza se vingando"
Isto quando não se responsabiliza
as vítimas com frases como:
– "também ... quem mandou morar naquele
lugar"
– "são essas pessoas que mais sofrem as que mais
degradam a natureza"
As vezes percebo a falta de ponderações
mais profundas e estruturais mesmo entre os que lutam por direitos, participam
de movimentos sociais, identitários e partidos de esquerda. Isto transparece
quando as pessoas vitimadas por eventos climáticos ou meteorológicos extremos
aparentam não serem organizadas em movimentos sociais e/ou não se autodeclaram
em algumas das identidades possíveis ou idealizadas. Talvez seja porque são as
pessoas que estão fora das pautas mesmo dos que militam em movimentos sociais e
identitários.
Como escrevi antes, aqui em
Ilhéus uma grande parte dos que foram vitimados pelas tempestades (melhor
seria: descaso do estado) é composta por pessoas moradoras em áreas de risco.
Pessoas que não estão em nenhum território considerado indígena ou quilombola e
não necessariamente se autodeclararem ou se organizarem em movimentos sociais e
identitários. Mesma ponderação acredito que vale para as diferentes pessoas
atingidas pelo “Ubá” e “El Niña” nas diversas áreas do Sul, Extremo Sul, Oeste,
Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais.
Porém, questiono: quais as
origens étnicas e sociais da maioria das pessoas vitimadas e esquecidas pelo
estado aqui nas áreas afetadas pelo ciclone subtropical e “El Niña”? Quais as
ancestralidades daquelas/daqueles que moram em áreas de risco e são
despossuídas de riquezas materiais? Com escrevi antes: são
"herdeiras" de um estrutural e histórico processo colonial e
capitalista de espoliação/expulsão das terras.
Como possibilita pondera
Frantz Fanon, o caminho é refletir sobre a necessária decolonização. Isto é,
precisamos enfrentar um processo de culpabilização dos próprios pobres pela
pobreza. Combater psicopatologias que tentam introjetar nas subjetividades uma
rede de auto-responsabilização por não se adaptarem a chamada “civilização” ou posturas
idealizadas. Posições que tiram de foco o estrutural processo de colonização,
enriquecimento, racismo e desigualdade social do sistema capitalista.
Assim, na minha percepção,
são expressões da colonialidade: assinalar que a culpa da pobreza é dos próprios
pobres; responsabilizar pelos eventos naturais extremos o “ser humano” como uma
categoria genérica universal; atribuir à vingança da natureza acontecimentos
como o ciclone subtropical “Ubá” e “El Niña”; não ter empatia ou solidariedade
aos que não se organizam ou se identificam com as formas como desejamos, mesmo
sendo excluídos.
Precisamos ser
solidárias/solidários e unidas/unidos na luta resistente e (re)existente de
todas as pessoas marginalizadas e excluídas pelo estado, grupos que possuem o
poder enconômico/político e pelo capitalismo.
Na minha compreensão eventos
extremos como o “Ubá” e “El Niña” tem relação com a existência do capitalismo.
Segundo o climatologista Francisco Eliseu Aquino, Departamento de Geografia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS):
“Neste momento, não conecto diretamente as mudanças climáticas com esse
evento extremo", pondera. "Mas, num planeta mais quente, eventos
extremos tornam-se mais frequentes, com a formação de depressões subtropicais
como esta [vista na Bahia]", finaliza. (25)
A contínua exploração da
natureza, bem como o aumento da já elevada desigualdade social são fatores que
provocam desequilíbrios naturais e cada vez mais colocam pessoas em situações
de perigo. Pessoas que geralmente pertencem às camadas populares da população e
são vítimas dos que estão a frente de instituições,
empresas, organizações, estados e corporações. Dirigentes adoecidos de wetiko
que é uma palavra usada “por grupos indígenas norte-americanos” para
denominar um “patógeno [que] engana seus hóspedes, levando-os a acreditar que
obter a força vital dos demais (plantas, animais, pessoas etc.) é uma forma
lógica e racional de existir. Em outras palavras, é o vírus do egoísmo (...) (26)
Cada dia mais a destruição em nome do capital vem
devorando as matas, bichos, povos e águas de tudo quanto é lugar. Essa fome
insaciável tem vários nomes de empresas, pessoas, estados, corporações,
instituições, organizações. Nomes que tentam se disfarçar com o “manto” nada
sagrado de civilização e do desenvolvimentismo. Por vezes também aparecem
disfarçados em “empreendedorismos”, “sustentabilidade”, “ecologismo” e
“ambientalismo de resultado”.
Novos questionamentos surgem
então: como acreditar nas resoluções da Conferência do Clima (COP26) no
enfrentamento da “urgência ambiental” sem discutir o capitalismo que em si é devastador
da natureza? Por que também não discutir o fim da exploração do homem pelo
homem, do trabalho humano e das desigualdades que geram as ocupações de risco? Por
que não debater o fim das desigualdades sociais e econômicas? Porque também não
falam da crise do capitalismo que gera governos fascistas, ditatoriais e falsos
democratas.
Os seres humanos que comandam a destruição estrutural
e sistemática da natureza possuem nomes e dirigem política e economicamente o
capitalismo em seu plano estatal e nos setores privados. A Natureza em nossa
concepção não é vingativa, mas está em sua sabedoria nos avisando para pararmos
as atuações dos que estruturalmente dizimam a meio natural e cometem os
ecocídios.
Refletimos que se
não enfrentarmos a doença do capital, devastadora da Natureza e dos direitos
humanos, novos eventos climáticos ou
meteorológicos extremos, patógenos e comorbidades como a covid-19 podem
surgir ameaçando a vida na totalidade. Não entendam essas palavras como
manifestações distópicas, melancólicas, conformistas, fatalistas. Sou Indígena e
como os Povos Originários resisto e (re)existo a mais de cinco séculos de
invasões, genocídios, etnocídios e ecocídios.
Por isto questionamos no
início deste texto: será que foram só os temporais que abalaram e ainda
acometem as populações despossuídas de riqueza material do Sul, Extremo Sul,
Oeste, Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais. Os chamados eventos climáticos
e meteorológico extremos são os únicos responsáveis por afetarem as vidas,
geralmente das pessoas mais carentes materialmente pelo país afora, resultando
em mortes, ferimentos, doenças e perdas do pouco que se tem? Ou será que o
capitalismo e seus mandatários também possuem responsabilidades?
Reafirmo que precisamos
ser solidárias/solidários e unidas/unidos nas lutas resistentes e (re)existentes
das pessoas que não são organizadas
em movimentos sociais e/ou que não se autodeclaram em algumas das identidades
possíveis ou idealizadas. Meu caminhar é de inspiração Zapatista e de união à
todes que sofrem e lutam contra o capital no cotidiano. Precisamos lutar
por um mundo ondem cabem vários mundes,
com justiça social, respeitando as diferenças.
Quando perguntaram ao zapatista Subcomandante
Marcos porque cobria o rosto, ao finalizar sua resposta ele disse ...
Marcos é todas as
minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo ¡Ya basta!
Todas as minorias na hora de falar e maiorias na hora de se calar e aguentar.
Todos os intolerados buscando uma palavra, sua palavra. Tudo que incomoda o
poder e as boas consciências, este é Marcos. A vezes é necessário cobrir o rosto
para mostrar a realidade.
Os potyrom,
motyrõ, mutirões populares são expressões desses caminhos de construção
coletiva, autônoma e às margens do poder do estado. Na ausência do estado e do
capital o povo não cansa de nos oferecer exemplos de resistências e (re)existências
ao bio-necropolítica que mantém o bio-necropoder do capitalismo. Alguns desses
caminhos vem durante estes momentos de sofrimentos como ocorre aqui em terras
baianas.
O Povo da cidade de Vereda (BA) realizou um
motyrõ e improvisou uma ponte com pedras e troncos para liberar o acesso daquele
município no sentido de veículos passarem “levando mantimentos e resgatando
moradores no município de Jucuruçu (BA)”, ilhados devido às enchentes dos rios. (27) Já algumas pessoas moradoras de Coaraci e Itapitanga aqui no Sul da Bahia
fizeram uma "corrente humana" para “poder transportar doações a
pessoas afetadas pelas fortes chuvas, depois que um trecho da BA-561 se rompeu
( ...)” (28)
Motyrõs
populares que fazem lembrar de algumas das canções que cantamos em nossos
porancys e torés:
Vamo, vamo minha gente
Uma noite não é nada
Vamo vê se nós acaba
Com resto da empretitada
Aqui chegou foi o Povo
No romper da madrugada
Vamo vê se nós acaba
Com resto da empreitada
AWÊRÊ AIÊNTÊN !!!
________________________________
DEIXO POR FIM UMA LIVRE INTERPRETAÇÃO DO SONETO E DA CANÇÃO "TRISTE BAHIA"
QUE AQUI VIROU
(RE)EXISTI BAHÊA
Ixé asó xe si Jacy
Touri peti bõ
ixé asó xé ubi Tupã
*Sobre o Autor: Casé Angatu - Indígena e morador no Território Tupinambá em
Olivença (Ilhéus/BA) na Taba Gwarïnï Atã – uma das áreas afetadas pelas tempestades causadas pelo ciclone subtropical Ubá e
“El Niña”. Leciona no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações
Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER-UFSB) e na
Universidade Estadual de Santa Cruz – (UESC/Ilhéus/BA). Pós-Doutorando em
Psicologia na UNESP/Assis/SP; Doutor pela FAU/USP; Mestre em História pela
PUC/SP; Historiador pela UNESP. Autor de livros e textos: alguns deles citados
neste texto.
(1) Jornal
Correio da Cidadania. ANGATU, Casé. “Um olhar indígena decolonial sobre
as inundações que abriram o ano”. 10/01/2022. Disponível em: https://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14888-um-olhar-indigena-decolonial-sobre-as-inundacoes-que-abriram-o-ano?fbclid=IwAR0KCUGJrRrj4-iJ1S-UzNlOTx0P8mGMKwbo9tdBYZGlzIzXbqz6BVrT684
(2) Os nomes dos Parentes que aparecem neste diálogo foram recriados para presente narrativa no sentido de resguardar os mesmos. A conversa foi aqui reproduzida com algumas alterações até porque estava guardada na memória que as vezes é etérea.
(4) O nome “Ubá” dado pela Marinha do Brasil ao ciclone subtropical que nos
afetou é de origem tupy e significa Canoa. A Marinha utiliza uma série de nomes
indígenas para denominar “eventos climáticos ou
meteorológicos extremos” como o que ocorreu:
Arani (tempo furioso); Bapo; Cari (homem branco); Deni (tribo indígena); Eçaí (olho pequeno);
Guará (lobo do cerrado); Iba (ruim); Jaguar (lobo); Kurumí (menino); Mani
(deusa indígena); Oquira (broto de folhagem); Potira (flor); Raoni (grande
guerreiro); Ubá (canoa indígena); Yakecan (o som do céu) (In: CLIMATEMPO,
Clima e Previsão do Tempo. Novo ciclone subtropical poderá se formar na
costa brasileira. Acesso em: https://www.climatempo.com.br/noticia/2021/04/17/novo-ciclone-subtropical-podera-se-formar-na-costa-brasileira-9190).
(5) “Evento climático e meteorológico
extremo” é forma como os especialistas em climatologia e meteorologia chamam
acontecimentos como o ciclone subtropical “Ubá” que nos atingiu.
(6) O nome Tupã faz menção a uma das manifestações da nossa cosmologia
indígena.
(7) NOTÍCIAS
AGRÍCOLAS. Supercomputador Tupã não será desligado em 2021: Brasil precisa
atualizar máquina, mas previsões são mantidas, diz INPE. Acesso em: https://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/clima/294364-supercomputador-tupa-nao-sera-desligado-em-2021-brasil-precisa-atualizar-maquina-mas-previsoes-sao-mantidas-diz-inpe.html#.YbnZ9b3MLIU , 05/08/2021.
(8) CLIMATEMPO, Clima e Previsão do Tempo. Novo ciclone subtropical
poderá se formar na costa brasileira. Acesso em: https://www.climatempo.com.br/noticia/2021/04/17/novo-ciclone-subtropical-podera-se-formar-na-costa-brasileira-9190 , 17/04/2021
(9) METSUL – Meteorologia. Ciclone com Trajetória Atípica Durante a Semana
na Costa Brasileira. Disponível em: https://metsul.com/ciclone-com-trajetoria-atipica-durante-a-semana-na-costa-brasileira/ , 5/12/2021.
(10) CBN, Jornal da. Ministro
descarta necessidade de conversa com governador da Bahia sobre estragos da
chuva. Acesso em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/361227/ministro-descarta-necessidade-de-conversa-com-gove.htm , 13/12/2021,
(11) METSUL – Meteorologia. Sobe o Número de Vítimas pela Chuva Extrema
na Bahia. Disponível em: https://metsul.com/sobe-o-numero-de-vitimas-pela-chuva-extrema-na-bahia/ , 19/12/2021.
(12) FOLHA/UOL, Cotidiano. Após temporal
na Bahia, famílias reviram lama e temem por futuro. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/12/apos-temporal-na-bahia-familias-reviram-lama-e-temem-por-futuro.shtml , 14/12/2021.
(13) Jucuruçu foi uma das cidades mais
abaladas pelas tempestades onde “mais de 500 famílias foram desabrigadas. Casas
e pontes foram arrastadas e as equipes de saúde tiveram que transferir o
atendimento à população para um local provisório depois que o prédio da
Secretaria Municipal de Saúde foi totalmente danificado”. (In: METSUL –
Meteorologia. Sobe o Número de Vítimas pela Chuva Extrema na Bahia.
Disponível em: https://metsul.com/sobe-o-numero-de-vitimas-pela-chuva-extrema-na-bahia/ , 19/12/2021.
(14) UOL, Portal. Bahia: órgão federal emitiu 3 alertas de risco de inundações.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/28/orgao-federal-emitiu-alertas-mas-chuva-superou-todas-as-previsoes-na-bahia.htm?cmpid=copiaecola , 28/12/2021.
(15) UOL, Portal. Bahia: órgão federal emitiu 3 alertas de risco de
inundações. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/28/orgao-federal-emitiu-alertas-mas-chuva-superou-todas-as-previsoes-na-bahia.htm?cmpid=copiaecola , 28/12/2021.
(16) FIOCRUZ, Fundação Instituto Oswaldo
Cruz. Análise de Situação em Clima e Saúde. Rio de Janeiro:
Fiocruz, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica -
Icict, Ministério da Saúde, Organização Panamericana de Saúde - Opas,
2017. Disponível em: https://climaesaude.icict.fiocruz.br/tema/eventos-extremos-0 , 2017.
(17) CORREIO 24 HORAS, Após cheia do Rio Cachoeira, 82 famílias se alojam
em baias de animais em Itabuna. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/apos-cheia-do-rio-cachoeira-82-familias-se-alojam-em-baias-de-animais-em-itabuna/ , 31/12/2021.
(18) Os dois livros de minha autoria que foram mencionados são: ANGATU, Casé
(SANTOS, Carlos José F. dos). Nem Tudo Era Italiano – São Paulo e Pobreza na
virada do século (1870-1915). São Paulo: Annablume/FAPESP, 4a. Edição 2018;
& ANGATU, Casé (SANTOS, Carlos José
F. dos). Identidades Urbanas e Globalização – a formação dos múltiplos
territórios em Guarulhos/SP. São Paulo: SINPRO/GRU, 2006.
(19) ILHÉUS, Câmara Municipal. Comissão dos Altos e Morros de Ilhéus
Visita o Amparo, Legião e Soledade. Disponível em: https://www.camarailheus.ba.gov.br/Site/Noticias/noticia-071220212112261673-COMISS-O-DOS-ALTOS-E-MORROS-DE-ILH-US-VISITA-O-AMPARO-LEGI-O-E-SOLEDADE , 07/12/2021
(20)BRASIL, República Federativa do. Estatuto da Cidade - Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001 que
regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em:
https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/101340/estatuto-da-cidade-lei-10257-01
(21) “Implementado pela Prefeitura de São Paulo em parceria
com 108 Associações Comunitárias e 24 entidades de assessoria técnica, o
Programa beneficiou cerca de 60 mil pessoas. Os recursos foram oriundos do
Fundo Municipal de Habitação e do Ministério das Cidades”. (In: CEDEM, Centro de Documentação e Memória da UNESP. Habitação
social da prefeita Erundina é referência internacional. Disponível em: https://www.cedem.unesp.br/#!/noticia/173/habitacao-social-da-prefeita-erundina-e-referencia-internacional/ , 29/11/2016).
(22) As fotos fazem parte do seguinte estudo: AYRA TUPINAMBÁ, Vanessa
Rodrigues dos Santos. Aupaba Anamã Jycayba: Mbaecuaba-Eté Mboessaba
Tupinambá Amotara – Taba Itapuã = Território E (Re)Existência Na Educação
Escolar Indígena Tupinambá Decolonial: Colégio Estadual
Indígena Tupinambá Amotara (Aldeia Itapuã – Olivença –Ilhéus/BA). Terra
Indígena Tupinambá: Dissertação de Mestrado apresentada junto ao PPGER/UFSB.
Disponível em: file:///C:/Users/casea/Downloads/Vanessa_R_Santos_-_Verso_Final_28_12_2020_1%20(3).pdf , 2020.
(23) Vale salientar que o Censo de 2010 foi o último realizado pelo IBGE.
(24) ANGATU, Casé. “Dossiê: De/S/Colonização Estética: Saberes Tradicionais, Artes, Dissidências”. In: Revista Espaço Acadêmico. Maringá. UEM, 2021. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/60509/751375152906?fbclid=IwAR1RDNYIDffpT3lPS-ZtSQg5Uq0QcGN3e4Btu3YpAs5CNskUC7HnlAHOAZc , p.13-24.
(25) BBC MEWS. O que causou tempestade atípica que arrasou o sul da Bahia. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59617328 , 10/12/2021.
(26) REDAÇÃO, Outras Palavras. “Wetiko, a grande doença psíquica do Ocidente?”. In: Outras Palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/sem-categoria/wetiko-a-doenca-psiquica-do-ocidente/ , 21/01/2020.
(27) UOL, Cotidiano. Mutirão improvisa ponte com pedra para liberar acesso a cidade ilhada na BA. Acesso em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/13/moradores-e-prefeito-improvisam-ponte-para-chegar-a-municipio-ilhado-na-ba.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola , 13/12/2021.
(28) UOL, Cotidiano. BA: Moradores fazem 'corrente' para levar doações após cratera abrir em via. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/28/moradores-fazem-corrente-para-levar-doacoes-na-bahia.htm?cmpid=copiaecola , 28/12/2021.
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